Thursday 30 May 2013

Cinzas sobre o verde


Baseado em Manaus, o fotógrafo Alberto César Araújo revela em imagens coletadas durante anos em campo as faces da destruição da floresta. Outra impressionante registro do ensaio o Olhar amazônida, de abril de 2010.


Monday 27 May 2013

mia couto - dia de áfrica


29 de maio, Dia de África
COMPANHEIROS

quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros

MIA COUTO
No livro "Raiz de Orvalho e outros poemas"

Sunday 26 May 2013

A defesa do óbvio

correio da cidadania
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8378:submanchete170513&catid=72:imagens-rolantes

A defesa do óbvio


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ESCRITO POR PAULO PASSARINHO   
SEXTA, 17 DE MAIO DE 2013


Outro dia desses, vi uma postagem em uma rede social da internet com a seguinte frase: “que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?”. A frase era atribuída ao dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, também um conhecido frasista. Não tenho a menor certeza da autoria mencionada, mas de fato é muito penoso viver em um tempo onde o que deveria ser o óbvio passa a ser visto como complexo ou inviável, ou até mesmo desconsiderado.

O momento político e econômico do Brasil nos dá inúmeros exemplos dessa espécie de abobalhamento – ou, pior, acanalhamento – que afeta povos, sociedades, países inteiros em determinados momentos históricos. A própria Alemanha de Brecht, com toda a sua tradição intelectual e filosófica, se deixou levar pela aventura nazista e certamente pode ter sido a fonte de inspiração desta lúcida e realista frase atribuída a ele.

O Brasil experimentou, durante décadas do século passado, um processo de industrialização que nos permitiu constituir uma base produtiva complexa, para um país dependente e na periferia do sistema capitalista. Mantendo integrado um país territorialmente continental, fortalecemos nossa unidade com estruturas sofisticadas de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica; serviços de telefonia e telecomunicações; produção interna de bens de consumo, insumos e bens de capital.

É verdade, também, que esse processo manteve o país dentre os mais desiguais e injustos do mundo, situação que se torna mais grave, e dramática, quando constatamos as riquezas que temos e todas as prerrogativas que nos facilitariam construir uma sociedade de fato democrática, justa e harmoniosa. Esta é uma grave constatação, que apenas nos evidencia que o crescimento econômico, por si só, não é condição suficiente para enfrentarmos os desequilíbrios e injustiças que nos marcam e nos envergonham.

O sentido e a direção política das estratégias de crescimento econômico são essenciais de serem bem definidas, para que as suas consequências se revertam em favor das maiorias do povo, em geral, no nosso país, abandonadas e marginalizadas. Esta é, talvez, uma primeira obviedade que nossa história econômica demonstra: não nos basta crescer, mantendo-se estruturas econômicas e regras legais que facilitam a manutenção e ampliação da concentração de renda e riquezas.

Uma segunda obviedade decorre do processo mais recente de contrarreformas, que se encontra em curso no Brasil desde o início dos anos 1990. O processo anterior – o do século passado – se esgotou ao final dos anos 1970 e início da década de 1980, a partir da chamada crise da dívida externa. Apenas, após a renegociação da dívida externa do país, sob a chancela do Departamento de Estado e da Secretaria do Tesouro dos EUA, houve condições de se unificarem as classes dominantes do país em torno de um novo projeto político, representado pela nova ordem econômica imposta pelo Plano Real.

Abertura financeira, abertura comercial, privatizações e subordinação da dívida pública aos ditames de uma política monetária associada a uma política de valorização cambial produziram uma séria alteração estrutural na economia brasileira. Regredimos de forma espetacular, mas, na medida em que as grandes corporações, nacionais e estrangeiras, se beneficiaram, um novo pacto político foi forjado. Ao povo, a grande vantagem apresentada foi o “fim da inflação”, argumento até hoje acionado, sempre que algum objetivo das forças hegemônicas – tendo à frente bancos e multinacionais – se encontra sob risco ou ameaça.

A regressão mencionada se vincula à acelerada desnacionalização do parque produtivo; à desestruturação da capacidade de planejamento e gestão das funções do Estado voltadas ao atendimento das demandas sociais e à infraestrutura logística; à regressão produtiva da estrutura industrial; à reprimarização da pauta de exportações; à acelerada oligopolização e financeirização da economia. Ora! O que temos em curso é uma brutal regressão em relação ao que já fomos, em passado não muito distante.

Ao mesmo tempo, e certamente vinculado ao processo da nova hegemonia que se impôs, vivenciamos o rebaixamento da política e dos nossos partidos. O mundo dos negócios – e não da cidadania – parece ser o objeto da preocupação da maior parte do universo político-partidário. A metamorfose dos antigos partidos de esquerda é notória e programas sociais compensatórios, preconizados pelo Banco Mundial e voltados aos mais pobres, parecem ser o máximo possível a ser feito.

A verdade, nua e crua, é que voltamos a ficar – tal e qual na República Velha – extremamente subordinados às ondas de expansão do comércio internacional e aos humores dos financistas mundiais. São evidentes os imensos riscos que essa opção encarna. Contudo, assim como a euforia que marcou o país no período de 1994 a 1998 se desfez – não sem antes permitir a eleição e reeleição de FHC, em votações decididas já em primeiro turno –, parece que agora as ilusões daqueles que defenderam a ideia que vivenciávamos um neodesenvolvimentismo não se sustentarão.

Muito além de problemas conjunturais, traduzidos no pífio crescimento da economia e nas taxas de inflação, atenuadas pela irresponsável valorização do real, temos problemas estruturais graves. Nossas contas externas se deterioram com velocidade, com o movimento concomitante de redução do saldo comercial e ampliação do déficit da conta de serviços, projetando um resultado negativo das contas correntes do país, para esse ano, que poderá chegar a US$ 80 bilhões. A trajetória deste indicador é apenas um retrato dos equívocos a que estamos sendo submetidos. Entre os anos de 2003 e 2007, chegamos a ter um resultado positivo na conta corrente, por conta do boomdos preços das commodities. Entretanto, desde 2008 voltamos a apresentar déficits crescentes, que expõem potencialmente nossa vulnerabilidade externa. Em suma: estaremos novamente nas mãos dos investidores externos e da confiança dos mesmos em relação ao nosso país. Confiança que, como sempre, estará vinculada às facilidades e vantagens que a eles poderemos oferecer.

Como exemplo, lembro os criminosos leilões de petróleo que nesta semana foram retomados e que serão ainda incrementados, neste ano, com novas licitações para exploração de bacias de petróleo e gás, incluindo as cobiçadas reservas do pré-sal. Além, é sempre bom lembrar, das prometidas concessões de portos, aeroportos, ferrovias, rodovias e tudo aquilo que for do apetite dos investidores privados e de preferência estrangeiros.

Por tudo isso, o que talvez precisemos possa se resumir a uma obviedade: a necessidade de um modelo alternativo de desenvolvimento, soberano – de acordo com nossas potencialidades; democrático, pois fundado nas reais necessidades do povo; e de bases nacionais, envolvendo bandeiras históricas, como a reforma agrária e agrícola; uma verdadeira reforma tributária progressiva; uma reconfiguração da estrutura fiscal, com a descentralização de recursos, hoje na esfera federal e concentrados na administração da dívida pública, em prol do financiamento das políticas sociais e de infraestrutura; o fortalecimento da Previdência Social Pública, sob o regime de repartição e efetiva proteção a todos os assalariados do país, com rendimentos equivalentes ao valor-teto dos vencimentos do funcionalismo público; e, especialmente, a recuperação do Estado, na sua capacidade de planejar, executar e gerenciar uma nova ordem econômica, social e política.

Porém, para o país abraçar um programa desta natureza será necessário algo que está longe do óbvio: a vontade política de enfrentar riscos, desafios e a ousadia de avançar em projetos que se chocam contra os interesses de bancos e multinacionais. Será necessário reconstruir forças políticas, fiéis ao compromisso com a mudança e a ousadia, características abandonadas por aqueles que, ao chegarem ao governo, optaram pela covardia e acomodação.


Leia também:

Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.

Monday 20 May 2013

As cicatrizes do planeta vistas do espaço


No início do mês correu pela internet imagens de diversas minas a céu aberto localizadas ao redor do mundo. Tais cicatrizes na face de nosso planeta podem ser vistas do espaço, e algumas são realmente impressionantes, como a Mina Mir, a primeira e mais ampla mina de diamantes da União Soviética, com 525 metros de profundidade e 1.200 m de diâmetro. Outra cratera impressionante escavada na busca incessante por minérios é a Bingham Canyon Mine, nos EUA, considerada a maior do mundo, com 4.000 metros de diâmetro e quase 1.000 metros de profundidade. Em produção desde 1906, atualmente fornece quase 20% de todo o cobre consumido pelos EUA.

No Brasil, uma das mais famosas minas a céu aberto foi Serra Pelada, no município de Curionópolis no Pará, cenário de um dos filmes de sucesso do grupo humorístico Os Trapalhões. Ao final de 1984, a profundidade do buraco de Serra Pelada já era de quase 200 metros. Hoje a antiga cava onde se situava o garimpo é um lago com 100 metros de profundidade. Na Serra dos Carajás, no Pará, estão localizados diversos projetos de mineração, sendo considerado a maior reserva de minério de ferro do mundo com 18 milhões de toneladas. Já o município de Candiota, no Rio Grande do Sul, está localizada a maior jazida de carvão mineral do Brasil.

Não existem estudos a longo prazo sobre o sucesso da reabilitação desse tipo de exploração, devido ao tempo relativamente curto em que a mineração a céu aberto em grande escala vem sendo utilizada. Dependendo do tipo de minério explorado, a água da chuva e o oxigênio do ar podem oxidar o material deixado na mina e produzir ácido sulfúrico. Pode levar centenas de milhares de anos para que essas crateras deixem de ser consideradas uma ameaça ao meio ambiente.

As imagens foram retiradas do Google Earth.


Mina de Diamantes de Diavik, Canadá


Chuquicamata, Chile


Bingham Canyon Mine, EUA


Mina Mirny, Rússia


Itabira, Minas Gerais


Candiota, Rio Grande do Sul


Carajás, Pará


Serra Pelada, Pará


Antonio Cândido indica 10 livros para conhecer o Brasil


Antonio Cândido indica 10 livros para conhecer o Brasil


13.05.17_Antonio Candido_10 livros para conhecer o BrasilPor Antonio Candido.*
Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.
Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora. 
São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”. 
Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e execução:História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material. 
Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) eO movimento da Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império(1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à República(1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II. 
A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de partida para alargar as leituras. 
Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas. 
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha (1889-1930). 
O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes,A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política. 
Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc. 
* Artigo publicado na edição 41 da revista Teoria e Debate – em 30/09/2000

Monday 13 May 2013

Sunday 12 May 2013

Autobiografia de Mia Couto

Autobiografia de Mia Couto



"Nasci na Beira em 1955, sou filho de uma família de emigrantes portugueses que chegaram a Moçambique no princípio dessa década de 50. O meu pai era jornalista e era poeta. Ele publicou cinco ou seis títulos em Moçambique, uma poesia pouco íntima, mas também dois dos livros foram livros que tentaram ser livros de preocupação social, em relação ao conflito da situação existente em Moçambique. Mas eram livros em que a consciência política era mais antifascista, liberal, democrática, mas não questionando ainda a questão colonial. A família do meu pai é gente que enriqueceu um pouco no período da guerra, com garagens, e tinham portanto negócios ligados a automóveis. Eram do Porto.

O meu pai foi para África porque acho que ele queria seguir a carreira jornalística e não havia muita hipótese de emprego nessa altura em Portugal, penso que foi por isso. Mas havia também uma sensação de que eles precisavam de mais espaço, precisavam de começar uma coisa nova. A minha mãe vem duma aldeia de Trás-os-Montes, não tem história porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no parto duma próxima irmã. Ela ficou órfã, abandonada, depois foi acolhida por um padre que se apresentou como sendo tio delas. Então até o nome dela foi rescrito, foi inventado para ela não ter uma ligação com a sua mãe - uma "senhora do pecado". Penso que ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai passou... "distraído", ela agarrou-o e foram para o Porto. Depois foram de Portugal para Moçambique e nascemos nós, três irmãos, eu sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais velho, e o mais novo, que tem uma diferença de sete anos de mim, chama-se Armando Jorge. [...] O meu pai, com um grupo de alguns portugueses que tinham sido deportados de Portugal por motivos políticos, formaram associações do tipo cineclubes, centros culturais onde se faziam debates de certas coisas. O meu pai trabalhava em três jornais, o Notícias da Beira, o Diário de Moçambique e o Notícias, de Lourenço Marques.

[...] A Beira era uma cidade muito conflituosa porque a fronteira entre os brancos e os negros era uma fronteira muito misturada, muito "atravessada". E eu recordo-me - toda a minha infância é uma infância de viver no meio de negros, brincar, com eles, os meus amigos, as pessoas que eu posso referenciar da minha infância, com a excepção dos meus irmãos e mais alguns, todo o resto é uma infância toda vivida ali.

[...] Vivemos em quase todas as partes da Beira. O meu pai mudava constantemente de bairro. Mas era constante essa mistura. Porque a Beira é uma cidade conquistada ao pântano. Então, à medida que era possível secar uma região e construir casa de cimento isso fazia-se. Mas estavam lá as casas dos negros locais. Então, sempre do outro lado da rua havia africanos com casa de caniço. Não tanto esta arquitectura arrumada, de urbanização feita com plano, como aconteceu em Lourenço Marques. Vivi muito nessas zonas suburbanas, periféricas.

[...] Os brancos da Beira eram profundamente racistas. Quando eu saí da Beira para Lourenço Marques, em 1971, parecia-me que estava noutro país, porque na Beira havia quase apartheid em certas coisas. Não podiam entrar negros nos autocarros, só no banco de trás... Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os filhos dos brancos vinham com paus e correntes bater nos negros... Recordo-me duma história: eu tinha um senhor que me dava explicações de matemática, privadas, e ele era pai dum coronel que tinha feito um massacre em que tinham sido mortos 125 ou 130 camponeses. E ele tinha fotografias do massacre dentro de casa, como uma glória! Eu só andei uma semana naquelas explicações. Nós chamávamos-lhe o "Bengalão", porque ele tinha uma bengala grande, e quando começava a sessão de estudo ele mandava sair as mulheres - as meninas - e ficava só com rapazes, e dizia: "Cuidado, porque o pretinho está-nos a ouvir, é preciso impedir isso. Na escola eu tenho que baixar as notas dos negros para eles nunca ficarem à vossa frente, vocês têm que me ajudar nesta luta..." - e aquilo era uma coisa que para mim soava horrível.

[...] Eu guardo na minha infância, assim, uma coisa muito esbatida, um ponto de referência, as histórias que me eram contadas, dos velhos que moravam perto, vizinhos do outro lado da rua, de um outro mundo, e eu recordo esse mundo encantado até algumas histórias, sobretudo como eles me deixaram uma marca. Os meus dois irmãos também escreviam, com 16, 17 anos, e o meu irmão Carlos mais cedo, até. O meu pai tinha muito esta coisa que eu era o filho que lhe ia continuar a veia. [...] em 83, publiquei o meu primeiro livro. Como uma espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante, panfletária. Para se ser revolucionário era preciso falar de marxismo, nos operários, e eu resolvi fazer um livro de poesia íntima, intimista, lírico. E o Orlando Mendes, que faleceu agora, fez-me um prefácio bonito, explicando que era uma coisa "nova", no sentido de que se pode fazer uma poesia de vanguarda sem se falar muito em política. O livro esgotou-se rapidamente, não é o mérito daquele livro, quase todos eles se esgotavam.

Influências? Do Craveirinha, sim, um pouco do Craveirinha. Mas eu apaixonei-me mais pela linha dos brasileiros, pelo João Cabral de Melo Neto, pelo Carlos Drummond de Andrade. Quando comecei a descobrir o mundo da poesia pensava que os brasileiros tinham valores maiores. Talvez fosse uma resistência minha. Achava que havia uma certa injustiça praticada no relevo que se dava aos poetas portugueses em relação aos brasileiros, quando estes tinham superado os próprios portugueses. Sim, mas também tive a influência de alguns poetas portugueses, como Sofia de Mello Breyner, o Eugénio de Andrade, o Fernando Pessoa."

MIA COUTO

*



Zé Carioca e o imperialismo americano no Brasil

tópicos de história
http://topicosdehistoria.blogspot.com.br/2012/05/ze-carioca-e-o-imperialismo-americano.html


Zé Carioca e o imperialismo americano no Brasil


"A história do Zé Carioca está ligada a uma viagem que Walt Disney fez à America Latina em 1941. O Mundo Vivia sob o impacto da Segunda Guerra. A vinda de Disney - sugestão de Nelson Rockfeller, alto funcionário do governo americano - tinha o propósito de inspirar o desenhista a fazer filmes sobre o nosso continente, como forma de política de boa vizinhança...
A equipe americana esteve primeiramente na região do Lago Titicaca, no Peru, depois na Argentina e finalmente no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro." (Edição histórica Zé Carioca 60 anos)
Introdução

A historiadora Thais Garcia de Oliveira Rocha em seu artigo publicado recentemente na revista Tempo nos ajuda a entender como os EUA usaram os meios de comunicação para exercer sua soberania.

Passadas a primeira e a segunda grande guerra os EUA se tornaram a grande potencia mundial, a maior economia do mundo. Com a Europa devastada os governantes americanos temiam a propagação do comunismo no velho continente, para eles aqueles países em ruína eram mais propensos ao radicalismo e revolução social divergentes da sociedade de livre comércio.

A revolução russa de 1917 tinha se mostrado eficaz transformando a Rússia numa potencia mundial. A situação agora era diferente. A Rússia era um país devastado pela guerra. Conforme Hobsbawm (1995, p. 231) "...enquanto os EUA se preocupavam com o perigo de uma possível supremacia mundial soviética num dado momento do futuro, Moscou se preocupava com a hegemonia de fato dos EUA, então exercida em todas as partes do mundo não ocupadas pelo exército vermelho”.

Os americanos temiam que o comunismo chegasse aos países europeus e A Rússia temia a expansão americana. Por ser uma democracia a política americana de contenção soviética aconteceu de modo sutil através da construção de um sentimento de perigo mundial. Os americanos imbuídos do sentimento de que sua missão (intervencionismo) era de levar a democracia a todos os oprimidos (ao mesmo tempo expandindo sua economia) usou de uma arma peculiar para convencer os americanos e o mundo de que o estilo de vida americano era superior (ufanismo): a cultura*.

Desde o início do século XX os EUA criaram políticas expansionistas para legitimar sua intervenção em outros países. Por exemplo: Big Stick (Polícia internacional do Ocidente), uma política mais branda através da promoção de filmes nos estúdios de Hollywood³ que promoviam a política de boa vizinhança¹ e o ufanismo americano² pós-guerra (engrandecer o estilo de vida americano em detrimento do inimigo). 

A produção de quadrinhos: "Os quadrinhos tiveram um importante papel na construção do mal soviético, tanto internamente quanto externamente. Sua alta circulação e seu fácil acesso permitiu que a mensagem fosse divulgada em várias partes do mundo, inclusive na Índia, que chegou a adaptar alguns personagens americanos.(ROCHA)" 

Exemplos: O Quarteto Fantástico, Homem Aranha, Homem de Ferro, O Incrível Hulk, Capitão América.

  

 

No Brasil, irei me deter a construção da figura do Zé Carioca que é o representante do Brasil entre os animais falantes do Walt Disney. Para isso irei ter como base o artigo de Roberto Elísio dos Santos - Zé Carioca e a Cultura Brasileira.

A construção da figura do papagaio Zé Carioca se insere no contexto da política de boa vizinhança americana. Os quadrinhos da Walt Disney se caracterizam por possuir elementos culturais dos países em que estão inseridos os personagens. Zé Carioca é um exemplo que veremos mais a frente.

A Origem e características do personagem

"..., Zé Carioca cumpria uma função política: integrar os países da América Latina ao esforço dos aliados" (SANTOS). Para isso, os produtores procuraram eleger alguns elementos culturais brasileiros para a formação do personagem como a cordialidade, simpatia, malandragem, esperteza, indolência, etc.

Segundo Santos, percebe-se quatro fases na construção do personagem Zé Carioca:

I - Fase americana (1942-44): produzido por artistas americanos abordam suas tentativas de subir na vida sem esforço, através da malandragem.

II - Fase de transição (1955): Produzido pelo quadrinista argentino Luis Destuet Zé Carioca se torna um adjuvante nas aventuras protagonizadas por Donald e seus sobrinhos.

III - Fase de adaptação (1961-1970): Produção brasileira. Tem como característica envolver o personagem no cotidiano brasileiro cercado de elementos que caracterizam a cultura nacional.

IV - Fase de assimilação (1971-1990): Aqui o papagaio já está imerso na realidade brasileira de país em desenvolvimento (miséria, dívida externa, ônibus lotado, falta de água em casa) e suas principais características foram aguçadas: aversão ao trabalho, preguiça e malandragem.



Como almoçar de graça (1942)

Zé Carioca e o Goleiro Gastão (1961). 
Ed. 1311, (1976) Retratando a dívida externa brasileira.
"Zé Carioca harmoniza o paradoxo de cordialidade e malandragem, não como contradição, mas como condição intríseca de sua personalidade..." (SANTOS). Ele não é pobre nem rico, sua malandragem é buscar ter uma vida boa, curtir o momento, desfrutar do conforto, etc.

Mickey é aquele que obedece as leis. Pato Donald e Zé Carioca são os excluídos da sociedade. Enquanto Donald luta para ser aceito sem sucesso, o Zé recusa a se submeter a regras rígidas, tem resistência a integração (casamento, família e trabalho). O Zé Carioca absorveu características de personagens presentes na cultura brasileira. Por exemplo: Jeca Tatu e Macunaíma (indolência e malandragem).

A produção do Zé Carioca a princípio de origem americana, com o tempo foi ganhando contornos mais brasileiros incorporando o arquétipo popular - o malandro que vive em situações comuns ao ambiente nacional (samba, carnaval, futebol, folclore, etc). O Zé Carioca é a evolução do malandro brasileiro.



Evolução da Vestimenta do Malandro
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