Wednesday 3 July 2013

Gersem Baniwa, índio e antropólogo

Gersem dos Santos Luciano Baniwa é importante líder indígena, o representante indígena no Conselho de Educação e autor do primeiro livro da série Via dos Saberes, "O índio brasileiro - O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje". Produzida pelo projeto Trilhas de Conhecimento, a série Via de Saberes é composta de quatro livros sobre os índios brasileiros e foi publicada no início deste ano na Coleção Educação para Todos, do Unesco e do MEC. Baniwa conversou esta semana com o Prosa & Verso  por e-mail, durante as atividades do Abril Indígena, em Brasília. Leia a íntegra da entrevista concedida esta semana por e-mail ao GLOBO, durante as atividades do Abril Indígena, em Brasília:
Os povos indígenas representam cerca de 0,4% da população brasileira e  detêm cerca de   11%  do território nacional.  Muita gente  diz  que há muita terra para pouco índio, assim como diz  que há muito investimento em educação diferenciada, por exemplo, para pouco índio. O que acha dessa visão?
GERSEM BANIWA
:  Essa questão é a principal fonte de discriminação e de  negação dos direitos dos povos indígenas. É o ranço do pensamento medieval e colonialista, que considerava a cultura européia  a única aceitável. A comparação é contra toda  possibilidade de uma sociedade muliticultural. Se o princípio da multiculturalidade é a possibilidade de convivência harmoniosa ou tolerante entre diversas culturas e etnias, então é preciso admitir as diversas formas de vida dos povos e das culturas. Ora, os povos indígenas só podem continuar com suas culturas, tradições,  línguas,   mitologias, cosmologias,   filosofias, seus sistemas econômicos,  jurídicos e políticos, se continuarem tendo seus espaços territoriais e processos educativos próprios. Querer que os povos indígenas vivam em terras minúsculas ou em apartamentos como os não-índios nos centros urbanos é querer que   sejam extintos, que deixem de existir. Os povos indígenas, que vivem basicamente de caça e pesca, agricultura itinerante, de rituais, de cerimônias, de economia recíproca  e de solidariedade, precisam de territórios suficientes para esse exercício de vida coletiva. O tamanho do território determina as condições de sobrevivência alimentar e econômica, mas principalmente a sobrevivência cultural. Afinal, onde irão desenvolver seus rituais, suas tradições, suas caçadas e pescarias coletivas? Além disso, é necessário que se pense o futuro dos povos indígenas na perspectiva de seu crescimento demográfico, para não haver as tragédias que estamos vendo, por meio da mídia, com os índios guarani e terena no Mato Grosso do Sul, cujas terras,  quando   demarcadas, eram suficientes para a população,  então em franca decadência por conta do grande processo de genocídio e etnocídio do início  do século passado. Hoje são absolutamente  insuficientes  para a população indígena em franco crescimento demográfico após os novos ares da Constituição Federal  de 1988 . Vive-se lá num   amontoado e confinamento trágico de seres humanos.  Sem dúvida, esse é o maior desafio dos povos indígenas do Brasil   hoje:  mostrar para a sociedade, principalmente os segmentos mais conservadores,   que, por serem portadores de culturas e modos de vidas diferentes das sociedades não-indígenas, precisam ser vistos e tratados também de formas diferente, principalmente nos quesitos terra, educação e saúde. As terras indígenas precisam ser suficientes para garantir a reprodução física e cultural dos povos indígenas. A educação escolar e a saúde indígena precisam dar conta além da cidadania e direito universal de acesso á saúde e educação pública de qualidade, da educação e saúde diferenciada, o que significa, produção e materiais didáticos específicos, de formação de professores e agentes de saúde indígena específicos, além do envolvimento de pajés e lideranças tradicionais nas políticas públicas, pois só eles podem orientar a qualidade dos serviços e das políticas públicas voltados aos povos indígenas.  É um desafio   para o qual a série Via dos Saberes pretende contribuir.
A lei que obriga o ensino da cultura e da história dos povos indígenas pode ajudar? BANIWA:  A lei é importante porque estimulará a produção de livros didáticos que tratem de forma adequada as realidades históricas e atuais dos povos indígenas, sem os preconceitos, os estereótipos e as imagens deturpadas, que a literatura colonialista tradicional produziu e divulgou nas escolas e na mídia.  A lei, na verdade, regulamenta o que já estava assegurado na Constituição Federal e na leis infra-constitucionais, particularmente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), da necessidade dos sistemas de ensino e das escolas darem tratamento adequado no âmbito de seus processos didático-pedagógicos, sobre os povos indígenas do país. Não será tarefa fácil, na medida em que não existem  livros didáticos sobre a questão,  com abordagens adequadas e atuais. Esses livros deverão ser produzidos e isso depende fundamentalmente do financiamento público,  principalmente do Ministério da Educação e do Ministério da Cultura. Outro desafio será estimular  os povos indígenas  a escreverem livros. Existindo financiamento, outro desafio será estimular que os povos indígenas, principalmente os professores, estudantes, pesquisadores e acadêmicos indígenas se interessem e se dediquem a escrever livros. Outra esperança é de que a partir da lei, os sistemas de ensino e as escolas incorporem, em suas áreas de atuação, a necessidade de produção de livros didáticos sobre o tema e que isso venha estimular a criação e o desenvolvimento de grupos de estudos e pesquisadores indígenas e não-indígenas para tal fim. O que os povos indígenas podem fazer, a partir da lei, é aproveitar o ensejo para estimularem que as suas escolas se dediquem a produzir livros próprios, pois os professores junto com seus alunos são as melhores opções para elaboração de livros, com qualidade e a custos razoáveis, além da possibilidade de ampla participação das comunidades em todo empreendimento.  E os povos indígenas precisam traçar estratégias de articulação com os sistemas de ensino e com as escolas para que a lei seja cumprida, que não vire lei morta, como muitas vezes acontece com os direitos indígenas.  
Há muitos livros de apresentação dos povos indígenas escritos por antropólogos.  Qual  a particularidade do seu olhar?    
BANIWA:
  Na verdade já existem vários livros escritos por índios que tratam basicamente de mitologias ou experiências de projetos escolares ou de projetos produtivos e ambientais. São livros muito ricos e devem ser aproveitados na perspectiva apontada pela lei, embora estejam muito mais voltados para uma divulgação genérica, sem   preocupação didática ou voltados  para  um determinado público. Cito, como exemplo, uma coleção chamada “Narradores Indígenas” que já conta com sete volumes, que trata de mitologias escritas por lideranças indígenas do Alto Rio Negro no estado do Amazonas. São volumes densos, muito ricos e importantes para o público mais acadêmico ou as próprias lideranças indígenas, mas  pouco práticos para trabalhar em escolas como material didático, a não ser de forma  complementar, para eventuais pesquisas. No caso das produções de antropólogos, estas seguem fundamentalmente o perfil acadêmico, muito pouco aproveitável  no âmbito das escolas de educação básica, na medida em que são monografias muito densas e com linguagem distante de jovens da escola. De todo modo, nos dois casos, os materiais produzidos são importantes para subsidiar a produção de livros específicos para escolas. No caso dos antropólogos, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) deveria ser estimulada a estabelecer parcerias com as comunidades e as escolas indígenas na perspectiva de produção de livros, como uma forma de contribuição ou retribuição recíproca, do acúmulo de conhecimentos que foram gerados a partir dos povos indígenas e também como forma de tirar dos arquivos acadêmicos essa riqueza de conhecimentos, para que  seja levada ao público brasileiro. 
O livro “O Índio brasileiro — O  que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje”  tem uma característica particular pelo fato de ser um livro escrito não a partir de uma pesquisa acadêmica, mas a partir de, ou baseada em experiência concreta de vida. Portanto, reflete um olhar do que é vivido e não de conjecturas, análises, ou teorias. Além disso, o livro é escrito para um público específico que são os jovens indígenas e não-indígenas do ensino médio e de graduação. Aqueles que estão iniciando seu processo pessoal e coletivo de enfrentamento com o mundo das relações identitárias e  da realidade brasileira como uma sociedade pluricultural e multiétnica,  mas também de lideranças indígenas, que no dia-a-dia desenvolvem suas lutas a partir dessas realidades e contextos políticos abordados no livro.  Além disso, é um livro que privilegia a relação dos povos indígenas do Brasil com a sociedade nacional e internacional, principalmente com o Estado brasileiro, ou seja, trata dos desafios históricos, presentes e futuros dos povos indígenas. Neste sentido, a particularidade do olhar pessoal como baniwa, de outros olhares de antropólogos, está no olhar direto, sem subterfúgios teóricos e epistemológicos, para tentar dar conta da realidade vivida pelos povos indígenas, no dia-a-dia de suas lutas por sobrevivência, por garantia de seus direitos, por cidadania e por seu espaço na sociedade e na autonomia de vida em seus territórios. Isso é importante de ser considerado, pois o meu olhar não está focado no passado nem no que se poderia considerar como tradição, algo muito privilegiado pela antropologia clássica, para mim ainda vigente, embora considere as duas dimensões como fundamentais para a contextualização histórica das lutas indígenas por sus direitos, mas focado no contexto presente e nas expectativas do futuro que os povos indígenas estão construindo e as formas, estratégias que vão traçando para garantir seu espaço na sociedade de hoje, moderna, globalizada, tecnológica etc. Ou seja, procurei abordar temas, idéias, sonhos, que estão sendo falados, pensados, trabalhados pelos povos indígenas, aproveitando-me do privilégio de fazer parte dessas coletividades e dos processos sóciopolíticos que estão construindo.
No livro, o senhor observa que "toda concepção social, cultural e econômica de um povo indígena está relacionada a uma concepção de mundo e de vida, a uma determinada cosmologia organizada e expressa por meio dos mitos e dos ritos". É extensa a literatura científica produzida no país por antropólogos sobre essas questões. Como antropólogo baniwa, o que acha desses estudos? 
BANIWA:
 Como eu já afirmei antes, são estudos importantes seja do ponto de vista da ciência, seja do ponto de vista político. São estudos muito importantes, por exemplo, para fundamentar muitos direitos dos povos indígenas, como o direito ao território que exige comparação da tradicionalidade e imemorialidade de ocupação. Em geral são muito ricos para fundamentar a necessidade do direito coletivo específico, ou seja, como coletividades precisam ter sistemas jurídicos diferenciados para que seja garantida a continuidade étnica e cultural dos povos indígenas. Minha única crítica é que são estudos elaborados com a participação e ajuda dos povos indígenas, mas depois de sistematizados e publicados não são retornados aos povos indígenas que não ficam sabendo dos resultados e muito menos para que acabam servindo. Ou seja, são estudos produzidos para a academia e muitas vezes com resultados apenas aos próprios pesquisadores. Felizmente isso está mudando, pela própria pressão dos índios, que não aceitam mais serem apenas objetos ou informantes de estudos, querem ser também co-autores, sujeitos e beneficiários desses estudos. Com a possibilidade de termos cada vez mais índios antropólogos esse processo tende a ser acelerado, pois o índio antropólogo pesquisador obrigatoriamente tem que ter o compromisso, moral, ético e político com a comunidade, o que faz com que tudo o que faz deve fazer parte das estratégias de sua comunidade e de seu povo. Neste sentido, o controle sobre o índio antropólogo é muito grande, enquanto que sobre o antropólogo não-índios é mínimo ou quase inexistente.
Como vê a questão do "índio urbano"? Como o conhecimento, da história e da diversidade cultural, pode ajudar tanto o índio quanto o branco a observar e a lidar com essas diferenças? 
BANIWA:
 A presença indígena nos centros urbanos não é nova. Nova é a visibilidade que essa população está ganhando. Até então eram populações invisíveis e totalmente excluídas e negadas do campo dos direitos indígenas, de modo que sofriam dupla discriminação: de serem parte dos segmentos empobrecidos das periferias das cidades e excluídos dos direitos indígenas oferecidos aos índios de aldeias. Com o processo de democratização do país os processos de reafirmação étnica e identitária vieram à tona e junto as políticas de ações afirmativas, essas populações começaram a ganhar espaços de visibilidade e o movimento indígena e as políticas públicas foram pressionadas a olhar para eles também como sujeitos de direitos específicos, o que é absolutamente legítimo. O que  é necessário,  agora, é estender e consolidar políticas adequadas para eles, que não podem ser iguais àquelas voltadas para as aldeias e as terras indígenas, uma vez que as demandas e perspectivas são diferentes em muitos aspectos. Uma escola indígena de aldeia, por exemplo, visa a formar jovens indígenas para responder às necessidades da aldeia, melhorar a produção e comercialização de seus produtos. Uma escola indígena situada numa cidade como Manaus precisa formar jovens indígenas para a realidade de Manaus, cuja base é a aspiração ao mercado de trabalho. O que não pode é excluir essas populações dos direitos indígenas específicos, seja porque fazem parte do segmento indígena, portanto, portadores de culturas, tradições, valores próprios, seja porque podem aumentar o número de contingentes marginalizados das periferias das cidades, que resultam em um dos priores males das civilizações urbanas modernas.

sugestão da Profa. Beleni Grando.

fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2008/04/18/gersem-baniwa-indio-antropologo-98367.asp

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